Por José de Araujo Novaes Neto
(publicado no livro “Atividade publicitária no Brasil”, lançado pela Editora Almedina em 2021, sendo coordenadora a Dra. Larissa Andréa Carasso Kac)
Introdução
A obra musical é a mais bem sucedida das criações intelectuais do homem no decorrer dos séculos. O seu produto mais conhecido – a canção popular – influenciou e influencia gerações, desde o início da era do rádio, nos anos 1930 do século passado. Acetatos, gramofones, discos de vinil, CDs, streaming. As ferramentas através das quais as canções se espalharam pelo mundo foram várias, e a cada uma delas a influência das obras musicais mais se projetou e consolidou através das gerações. Mesmo nas obras audiovisuais, que representam outra modalidade de criação artística de grande sucesso e projeção nos últimos 100 anos, as canções e a música em geral são produtos indissociáveis e fundamentais de cada filme. Esta, aliás, é mais uma demonstração do poder das canções e da música em geral: imagine um filme ou uma série sem a trilha sonora. Imagine “Casablanca” sem “As timegoesby”. Ou “Embalos de sábado à noite” sem as canções dos Bee Gees. Ou o ótimo filme franco-canadense “Incêndios”, sem a impactante “YouandwhoseArmy”, do Radiohead. Ou “Laranja mecânica” sem “Singing in therain”. E por aí vai.
A canção popular é uma obra literomusical, com uma duração média de três a quatro minutos, cujo modelo se desenvolveu e aperfeiçoou no decorrer do século XX, moldada por dois elementos fundamentais que surgiram durante esse período: a invenção do disco com aconsequente criação do mercado fonográfico; e o surgimento e a popularização do rádio. O surgimento dessas duas novidades foi essencial para que essa modalidade de criação intelectual se tornasse o produto mais bem-acabado e influente já criado pelo espírito humano, inspirando gerações e marcando a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
A força da obra musical está na sua capacidade de nos alcançar, onde quer que estejamos. Ao contrário da literatura (na qual é necessário abrir um livro para fruir da leitura, e levar horas ou dias para conclui-la); da obra audiovisual (na qual é preciso se deslocar ao cinema, ou ligar a TV, ou o computador, e lá ficar por cerca de duas horas), ou de outra qualquer modalidadede criação artística, a música nos atingirá em qualquer lugar – na aula, na rua, no metrô, no ônibus, no restaurante, mesmo à nossa revelia. Sua audição será breve, e sua execução transmitirá emoções, seja numa canção popular, seja num concerto gravado, ou através de um músico de rua.
Ou por meio de um jingle, ou trilha de um comercial. Muitas das obras literomusicais que mais marcaram nossas vidas foram incluídas em peças publicitárias. E essas obras, na grande maioria dos casos, são criadas especialmente para vender um produto, seja utilizado somente como áudio (os jinglesde rádio) ou como parte de uma obra audiovisual publicitária. Além disso, muitas vezes os comerciais utilizam canções já gravadas ou conhecidas, para divulgação de produtos.
A inserção de uma obra musical numa peça publicitária – seja ela criada especificamente para essa peça, seja através da reutilização de uma obra ou fonograma preexistente – representa um produto cujo tempo de duração é muito inferior ao de uma canção popular, em seu formato tradicional. Uma peça publicitária pode ter apenas 15 segundos, ou 30, ou 45, ou um minuto. Portanto, a criação de um jingle, ou a reutilização de uma canção numa propaganda deve observar esse desafio, de adequar o produto a tal formato tão curto.
Na história da publicidade brasileira, raríssimos comerciais de TV ou rádio ultrapassaram tal exíguo tempo de duração. Entre as exceções, com mais de três minutos de duração, registramos as campanhas da revista Época, em 1998 (com trilha original de Jarbas Agnelli 1) ; das sandálias Rider, em 2004 (utilizando o fonograma de “Vamos fugir”, de Gilberto Gil, interpretada pelo grupo Skank2;da Vivo, em 2011 (utilizando o fonograma de “Eduardo e Monica”, de Renato Russo, interpretada pelo grupo Legião Urbana3; e da Vivo Internet em 2015 (utilizando o fonograma de “Exagerado”, de Cazuza. Leoni e Ezequiel Neves, com interpretação do próprio Cazuza)4.
Como as obras musicais são utilizadas nas peças publicitárias? Como o direito aborda e normatiza a inclusão dessas obras num meio tão específico? Quais os direitos envolvidos? Como os titulares de direitos relativos a tais obras são remunerados pela utilização de suas criações ?
Essas são as respostas que procuraremos dar ao longo das próximas linhas.
Conceito e Natureza da Obra Musical
De acordo com o disposto no artigo 7º da Lei 9610/98, são “obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”.
E o inciso V desse mesmo artigo define como uma das modalidades de tais obras “as composições musicais, tenham ou não letra”.
Para que seja reconhecida uma obra como intelectualmente protegida, três são os requisitos : a criatividade, a originalidade e a exteriorização. A originalidade não deve ser entendido como “novidade”, mas sim como um elemento que possibilite diferenciar aquela obra das demais, previamente existentes. E nessa consideração não se deve levar em conta o seu mérito ou valor artístico. Já o requisito da exteriorização pode ser atendido, nos termos do já mencionado artigo 7º, através de “criações expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível”.
Quem cria a obra intelectualmente protegida é seu autor. E este só pode ser pessoa física, conforme a regra expressa do artigo 11 da Lei 9610: “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”.
Segundo José de Oliveira Ascenção, num plano genérico, “o princípio deve ser fixado com toda a clareza : o autor é o criador intelectual da obra. A obra literária ou artística exige uma criação, no plano do espírito : autor é quem realiza esta criação”5.
Avançando mais na direção específica da obra musical, Eliane Abrão a define como “a combinação de sons (melodia) ou de sons e texto (letra) feita por um ou mais compositores, destinada à interpretação através do uso canoro da voz humana e/ou de instrumentos que emitam sons. O verso musical pode ser editado apenas como letra, e a melodia por meio de partitura, com ou sem letra. Ambas são obras protegidas isoladamente, o verso como texto literário e a melodia como obra musical. A respectiva combinação, interpretadas e fixadas em suporte mecânico, resulta em uma composição musical”6.
Já do ponto de vista técnico-musical, a obra musical é caracterizada pela união de três elementos constitutivos : a melodia, a harmonia e o ritmo. Segundo José Carlos Costa Netto, a melodia é caracterizada pela “emissão de um número indeterminado de sons sucessivos”; a harmonia “forneceria a roupagem, o estofo e o adorno da melodia”, e o ritmo seria “uma sensação determinada seja por diferentes sons consecutivos, seja por diversas repetições periódicas de um mesmo som, normalmente marcando o andamento da melodia”7.
Alguns autores e estudiosos da música identificam outros elementos distintivos da obra musical, como o timbre, a forma e a textura8.
Um outro aspecto muito importante do direito do autor é que o criador é titular de dois feixes de direitos : os direitos morais e os direitos patrimoniais. Os primeiros integramos direitos de personalidade, e estão ligados a elementos como a paternidade da obra, sua integridade, elaboração e divulgação. Segundo Rodrigo Moraes, constituem “uma série de direitos de ordem não-patrimonial que visam a proteger criador e criação. Esta constitui um reflexo da personalidade daquele e, consequentemente, uma emanação de sua própria dignidade como pessoa humana”9. Já os direitos patrimoniais consistem basicamente na exploração econômica das obras protegidas.
Por fim, uma regra muito importante do direito de autor é a que dispõe que ‘interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais” (artigo 4o. da lei autoral). Nesse sentido, é fundamental ter o máximo rigor e cuidado na formalização de todo e qualquer ato jurídico que diga respeito ao uso e à transferência dos direitos autorais.
Também invocamos, como fundamentais, as regras dos artigos 22 (“pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”), 28 (“cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”) e 29 (“depende da autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra , por quaisquer modalidades”, elencando em 10 incisos, quais seriam essas modalidades.
Esses artigos da lei 9610 representam o arcabouço fundamental da defesa do autor, necessário para que possamos prosseguir na presente análise.
A Peça Publicitária
Carlos Alberto Bittar define publicidade como “a arte e a técnica de elaborar mensagens para, por meio de diferentes formas de manifestação e de veiculação, fazer chegar ao consumidor determinados produtos ou serviços, despertando nele o desejo de adquiri-los ou deles dispor”10. Já a obra publicitária é definida como “criação intelectual, da regra breve e expressiva, que se destina a promover a comunicação ao público de determinado produto ou serviço. Contém sempre uma mensagem voltada para a sensibilização do público”
Em outra obra, o mesmo festejado professor define publicidade como “atividade complexa e de enorme importância datada de organização especial – em que se mesclam conotações de arte ciência e de meio de comunicação. Sobressai-se, neste contexto, o aspecto estético, acionado pelo acirramento da concorrência, a sofisticação dos mercados e outros fatores que tem imposto o aprimoramento das criações publicitárias, em que se utilizam, regularmente, artistas, escritores, cientistas, e, enfim, intelectuais inseridos dentre as expressões maiores da cultura em geral, em que se distingue como manifestação de índole própria e bem definida, gerando inclusive, obras de grande valor e exposição e mostras de caráter especial”11.
Já Antonio Chaves chama a atenção para o fato de que “para a feitura do filme publicitário convergem, na generalidade dos casos, duas empresas : a agência de propaganda, que elabora o roteiro literário fornecendo às vezes desenhos (story-boards) que indicam como poderão ser realizadas cenas do filme, e a produtora, que convoca todo um conjunto de artistas e profissionais : o diretor do filme, cenógrafo, decorador, o produtor do elenco (casting), o iluminador, o operador de câmera, diretor de arte, costumista, maquiador, cabeleireiro, técnico de som, técnico de efeitos especiais, eletricistas, maquinistas, carpinteiros, pintores, diretor de produção, assistente de produção, guarda-roupeira, contra-regra, montador, assistente de montagem, e inúmeros outros profissionais e auxiliares, dependendo das exigências de cada roteiro, além de artistas, modelões, figurantes, extras, etc., que obedecem “a sua diretriz ou orientação”12.
A obra publicitária, portanto, envolve uma multiplicidade de criações artísticas independentes, cada qual com seu criador, que deverá ter sua proteção autoral respectiva.
As Formas de Utilização da Obra Musical na Peça Publicitária
Existem duas formas de utilização das obras musicais em peças publicitárias:
- A primeira delas é quando é encomendada ao compositor a criação de uma obra musical específica, seja litero-musical, seja apenas instrumental (trilha), para utilização numa determinada peça publicitária. Nesse caso, o criador da futura obra musical deverá receber todas as informações possíveis sobre o produto publicitário em elaboração, para que sua criação possa ser a mais adequada possível, e condizente com o objetivo da agência ou da produtora que fizeram a encomenda.
- A segunda diz respeito à reutilização de fonogramas preexistentes ou a regravação de obras preexistentes, escolhidas pela agência ou pela empresa produtora do produto publicitário, e contratadas junto aos titulares de direitos (editoras, quando aos direitos autorais, e produtoras fonográficas, quanto aos direitos conexos).
Vamos falar um pouco sobre cada uma dessas formas de utilização.
O jingle ou a música criada especificamente para a obra publicitária
A forma mais frequente de utilização de uma obra musical em um produto publicitário é através da contratação de um compositor para a criação de uma canção específica, ou de uma trilha musical, identificada com a campanha de venda ou divulgação de um determinado produto.
Como surgiu essa modalidade de contratação?
Embora o rádio tenha surgido no Brasil no ano do centenário da independência (1922), foi no início dos anos 1930 que a propaganda se intensificou e popularizou. Desde então, a música passou a ser utilizada nas transmissões das mensagens publicitárias, muitas vezes como fundo musical para os textos dos “reclames”, em outras ocasiões com canções criadas especificamente para determinados produtos. Nos anos 1940, com o apogeu da “era do rádio”, as peças publicitárias passaram a ser mais elaboradas, e surgiram então os primeiros jingles profissionais.
Segundo PyrMarcondes, “jingle é uma peça fonográfica criada por profissionais do meio publicitário para vender produtos. É um recurso da propaganda para convencer o consumidor, cantando no seu ouvido”13.
Nos anos 1960 e 1970, jingles memoráveis foram criados, marcando gerações. Exemplos são a canção de natal do Banco Nacional, de autoria de Lula Vieira e Edson Borges, em 1975 (“quero ver você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do que faz”14(5); e o tema de natal da empresa aérea Varig em 1960, criado por Caetano Zamma (“Papai noel voando a jato pelo céu”15(6),exibido durante duas décadas.
O jingle ou a trilha são peças criadas especificamente para uma campanha publicitária. Nesse cenário, é fundamental identificarmos qual a relação existente entre o criador dessa obra musical, em relação à agência ou produtora da gravação. Existem várias situações a serem observadas, para identificarmos quais as formas de relação jurídica, e como o direito brasileiro cuida da titularidade dessas obras. Tais pontos serão melhor detalhados mais adiante.
Em qualquer desses casos, todos os direitos dos autoresdevem ser respeitados, observada, prioritariamente, a já citada regra do artigo 4o. da Lei 9610, referente à interpretação restritiva dos negócios jurídicos sobre direitos autorais.
Da mesma forma, os direitos conexos também tem a mesma proteção, no dizer de Carlos Alberto Bittar, que esclarece que, “com respeito aos direitos autorais, impõe- o seu respeito em toda a atividade publicitária, estendendo-se aos conexos (interpretação e reproduções)”16.
Os detentores dos direitos conexos não tem relação direta com a criação ou elaboração da obra publicitária, mas de alguma forma dela participam, seja na sua interpretação, produção ou difusão. Tal modalidade abrange, portanto, os direitos conferidos aos artistas, intérpretes ou executantes, aos produtores fonográficos e às empresas de radiodifusão, presentes nos artigos 89 e seguintes da Lei 9610. A observância destes direitos, e a elaboração documental adequada são de extrema importância na execução de uma campanha publicitária, para que se evitem problemas futuros.
A Utilização de Fonogramas e a Reutilização de Obras Preexistentes
A escolha, pelo produtor ou agência, de incluir canções já existentes na peça publicitária – muitas das quais fizeram sucesso, criadas por compositores consagrados, ou interpretadas por artistas de sucesso -pode envolver apenas o direito do autor, através da editora (regravando a obra, com outro arranjo ou outro intérprete diferente do original), ou então envolver também o direito conexo do produtor fonográfico, caso opte pela utilização de um fonograma da obra. Na condição de titular de direitos conexos, o proprietário do fonograma deverá autorizar a utilização da gravação escolhida, para o fim almejado, pelo tempo ajustado entre as partes, e pela remuneração contratada.
Essa modalidade de utilização de obras já existentes como trilha de uma campanha, tem por objetivo se aproveitar do impacto da canção e/ou do artista para mobilizar a memória afetiva de um potencial consumidor em torno de uma marca ou produto. Tal prática é utilizada no meio publicitário brasileiro desde os anos 1950. Como exemplos dessas utilizações nos últimos anos, podemos citar a canção “Blame” (Tiago Iorc) como trilha para a campanha das Lojas Rener,“17What a wonderful world” (Bob Thiele e George David Weiss), música conhecida na interpretação de Louis Armstrong, regravada por Joey Ramone para a propaganda da Coca Cola18, “Aquarela” (Toquinho, Maurizio Fabricio e Guido Morra) para a Faber Castell19;“Emoções” (Roberto Carlos / Erasmo Carlos) para a campanha Nestlé 90 anos 20; “Wewill rock you” (Brian May), sucesso do grupo Queen, que foi regravada por Britney Spears, Beyonce, Pink e Enrique Iglesias para a campanhada Pepsi21.
Outras formas de utilização da obra, envolvendo a imagem do artista (criador e/ou intérprete da obra) vem sendo utilizadas pelas agências de publicidade. Em 1999, Sting celebrou contrato com a marca de veículos Jaguar. O carro apareceu em seu clipe, e o filme comercial da marca teve a participação do próprio artista. O resultado foi que Sting vendeu mais CDs, e a Jaguar mais carros22. Isso ocorreu também com a cantora Anitta, em parceria com a empresa Mondelez (fabricante de chocolates, biscoitos e bebidas em pó), com relação ao videoclipe da música “Deixa ele sofrer”, na qual divulgou o suco da marca Tang. Em março de 2021, o clipe já alcançava mais de 160 milhões de views apenas no youtube23.
Em todos esses exemplos, ocorreu um feliz casamento entre uma canção de sucesso preexistente, com a utilização da imagem do artista, visando promover a divulgação de uma marca específica.
Como já dito, nesses casos de utilização dos fonogramas preexistentes, serão necessárias duas autorizações : a fonográfica (pois o produtor fonográfico detém os direitos sobre a gravação), e a autoral, através da editora que administra os direitos do autor.
Já na modalidade de regravação de canções conhecidas, sem utilização, portanto de fonogramas já registrados, normalmente são escolhidas canções que fizeram sucesso, fixando-as com outros intérpretes e arranjos, diferentes da gravação original. Um dos exemplos mais bem-sucedidos dessa modalidade foi a campanha da marca Rider, da agência /Brasil, que contou com artistas da MPB cantando sucessos de outros, com arranjos diferentes. Lulu Santos gravou, por exemplo, “Descobridor dos sete Mares” (Gilson Mendonça/Michel), sucesso na voz de Tim Maia24. Este, por sua vez, gravou “Como uma onda” (Lulu Santos/Nelson Motta), sucesso de Lulu25. Marina Lima deu nova versão a “Nem luxo, em lixo,”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho26. A série, que envolveu mais de 15 recriações de sucessos da MPB, foi um grande sucesso, não apenas publicitário, mas também fonográfico.
Nesses casos de regravação, reiteramos que será necessária tão somente a autorização do autor, através de sua editora. Em determinados casos, poderá haver a necessidade de autorização de versionista ou adaptador, caso esteja sendo utilizada a versão ou a adaptação da obra original.
Nesses casos de utilização de fonograma em obra publicitária, estamos diante do direito de sincronização, que se refere à necessidade de colocar em sincronia a obra musical com a imagem. Em outras palavras, trata-se do direito de inclusão da obra em produção audiovisual, como uma variação do direito de reprodução.
Titularidade de Direitos
Obra Sob Encomenda
Quando falamos da peça publicitária, estamos falando de uma obra sob encomenda.
Este é o ponto de partida para a análise da titularidade dos direitos do autor da obra musical incluída em uma peça publicitária.
A Lei 9610/98 é omissa a respeito da regulação da obra sob encomenda, razão pela qual a questão da titularidade dos direitos relativos à criação da obra publicitária tem suscitado polêmica. A lei brasileira de direitos autorais anterior (5.988, de 1973) estabelecia, em seu artigo 36, que “se a obra for produzida em cumprimento a dever funcional ou a contrato de trabalho ou de prestação de serviços, os direitos de autor salvo convenção em contrário pertencerão a ambas as partes, conforme for estabelecido pelo Conselho Nacional de Direito Autoral”.
Tal texto, portanto, criava uma regra objetiva – embora polêmica, à época – acerca dos direitos patrimoniais da agência ou produtora, de um lado, e do criador da obra musical, de outro.
Com relação a esse ponto, Bruno Jorge Hammes reclama que “é uma situação que a nova lei de direitos autorais não disciplinou, com sérios prejuízos para o mundo das artes em geral”27.
No mesmo sentido, Plinio Cabral lembra que “a antiga Lei 5.988, no seu art. 21, declarava que o autor é o titular de direitos morais e patrimoniais sobre a obra que cria. O problema surge com a obra sob encomenda ou, então, realizada em função de contrato de trabalho, o que não foi contemplado pela Lei 9.610/98. Ela é omissa a esse respeito. Neste caso, quem é o autor?”28. mesma obra, lembra que “a encomenda tem uma longa história na vida das artes. Obras magníficas e geniais foram feitas sob encomenda: Mona Lisa, a Santa Ceia, Moisés, os afrescos da Capela Sixtina – foram produzidos sob encomenda”29.
Carlos Alberto Bittar , há quatro décadas (em 1981) , muito antes, portanto, da edição da Lei 9610, já registrava que “a orientação consagrada universalmente é a de que ao autor cabem direitos morais e os patrimoniais sobre a obra. […] A exceção prende-se ao substrato jurídico da encomenda, que constitui forma derivada de aquisição de direitos patrimoniais de autor. Assim, à agência competem os direitos pecuniários nas obras nascidas sob sua coordenação, permanecendo na esfera do autor (quando possível a individualização, e a obra for de criação livre), os direitos não compreendidos por expresso no negócio jurídico correspondente”30.
Conforme já dito, a lei autoral brasileira não permite que uma pessoa jurídica seja considerada autora de qualquer tipo de obra. No entanto, é possível – e esta é uma prática recorrente no mercado publicitário – que uma empresa, como uma agência de publicidade ou produtora, contrate um autor (pessoa física) para criar uma obra musical, nos termos de determinados critérios e diretrizes impostos pelo comitente (empresa) ao comissário (autor). Essa modalidade de contratação geralmente é cumulada com a cessão de direitos patrimoniais de autor.
Diante desse cenário, como deve ser tratada a titularidade de tal obra musical ?
José Carlos Costa Netto, em opinião que endossamos, considera grave equívoco a atribuição de autoria de obra coletiva à produtora ou à agência publicitária (“empresa organizadora”). Segundo o eminente autor, tal entendimento “significa atribuir indevidamente à pessoa jurídica um direito essencial à pessoa humana, uma reconhecida ramificação dos ‘direitos da personalidade’, atribuição essa totalmente inaceitável, no meu entender”31. Em lastro a esse entendimento, invoca a regra dos artigos 11 e 17 da Lei 9610/98. O primeiro, já mencionado, é o que estabelece que “autor é pessoa física”. O segundo é o que estabelece ser assegurada a proteção às participações individuais em obras coletivas”, restringindo ainda, em seu parágrafo 2o., a titularidade do “organizador” da obra coletiva a direitos patrimoniais de autor (“cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva”).
Frente à omissão da lei e à possibilidade de interpretações lesivas aos direitos dos criadores, em decorrência de conflitantes interpretações sobre o tema, José Carlos Costa Netto, na mesma obra acima mencionada chama a atenção para lúcida crítica de Samuel Macdowell e Figueiredo quanto à questão:
“Como era previsível, a complexidade destas relações jurídicas estabeleceu um sério conflito entre as partes interessadas. Produtoras, anunciantes em muitas vezes, agências de publicidade reivindicam, cada um para si, a paternidade da obra e a exclusividade dos seus direitos autorais.Essa disputa, inócua e certamente infrutífera, se reflete na constante expedição de “circulares”, divulgadas no mercado pelas associações de classe de uns ede outros, cujo intuito, marcadamente corporativo, peca, de início, pela flagrante desconsideração da disciplina legal da matéria. Exemplo disso reside nas manifestações das associações de anunciantes, das produtoras e das agências de publicidade, que declaram a propriedade dos seus respectivos associados sobre os direitos autorais e os concitam a incluir, nos contratos de produção, cláusulas que lhe reservem o exercício exclusivo desses direitos. Nessa reivindicação predomina o sentido corporativista que ignora direitos de terceiros e procura alcançar, por via oblíqua, o controle sobre a exploração econômica de obras”32.
E, com efeito, essa preocupação deve ser compartilhada por toda a comunidade de autores. Consoante o escopo da lei autoral vigente no país, deve ser prestigiado o verdadeiro criador da obra, pessoa física, e reconhecido como o efetivo titular dos direitos a ela referentes.
Formas de Contratação e Remuneração
No caso da inclusão da obra musical em publicidade, temos o comitente (que pode ser a agência ou a produtora de áudio), e o comissário (no caso, o criador da obra musical, que poderá ser funcionário da empresa, prestador de serviços sem vínculo empregatício, ou desvinculado de qualquer participação na elaboração da obra publicitária).
Na ilustração desse cenário, Carlos Alberto Bittar opina que “a obra publicitária resulta, invariavelmente, de encomenda, seja na criação pela agência, seja na elaboração pelo produtor de fonogramas, seja na atuação de departamento ou agência do próprio anunciante”33.
José Carlos Costa Netto aprofunda a análise sobre esse ponto afirmando que “a relação do titular originário de direito de autor e conexos com tais empresas poderá se realizar, principalmente, de três formas :
• De forma desvinculada, sem participação do usuário na elaboração da obra, em que o titular, mediante certas condições de aproveitamento da obra e remuneração, autoriza a utilização de sua obra sem cessão ou transferência de direito (Por exemplo, o compositor de determinada obra musical autoriza sua utilização em determinado programa de televisão);
Sob o regime de prestação de serviços, sem vínculo empregatício, quando o usuário encomenda e remunera o autor para criação de uma obra que será utilizada por aquele (por exemplo, uma agência de publicidade encomenda a determinado autor um filme ou uma música, ou uma fotografia sobre determinado tema, e remunera-o para tanto);
Sob o regime de prestação de serviços com vínculo empregatício, quando o usuário contrata empregado para as funções de criação ou interpretação de obra intelectual (por exemplo, um jornalista é contratado, sob regime de emprego, para redação e matérias de sua especialidade, ou um ator é contratado, com vínculo empregatício, por uma emissora de televisão para atuar em determinada novela”
- De forma desvinculada, sem participação do usuário na elaboração da obra, em que o titular, mediante certas condições de aproveitamento da obra e remuneração, autoriza a utilização de sua obra sem cessão ou transferência de direito (Por exemplo, o compositor de determinada obra musical autoriza sua utilização em determinado programa de televisão);
- Sob o regime de prestação de serviços, sem vínculo empregatício, quando o usuário encomenda e remunera o autor para criação de uma obra que será utilizada por aquele (por exemplo, uma agência de publicidade encomenda a determinado autor um filme ou uma música, ou uma fotografia sobre determinado tema, e remunera-o para tanto);
- Sob o regime de prestação de serviços com vínculo empregatício, quando o usuário contrata empregado para as funções de criação ou interpretação de obra intelectual (por exemplo, um jornalista é contratado, sob regime de emprego, para redação e matérias de sua especialidade, ou um ator é contratado, com vínculo empregatício, por uma emissora de televisão para atuar em determinada novela”.
A questão da inclusão da obra musical numa peça publicitária pode estar contemplada em cada uma dessas três hipóteses.
A primeira delas se refere, por exemplo, à utilização, pela agência ou pela produtora, de uma obra musical preexistente, para inclusão numa peça publicitária, como em vários dos exemplos que apresentamos no item 3.2. Como já dito, no caso da mera utilização de um fonograma preexistente, estamos diante da necessidade de duas autorizações : a primeira delas, do produtor fonográfico, detentor dos direitos sobre aquela fixação. A segunda, do autor – ou diretamente, ou através de sua editora, caso a obra esteja editada – , com relação à parte autoral. No caso da regravação, será necessária apenas esta autorização do autor da obra ou seu representante. Com relação a essa modalidade, Costa Netto comenta que “nesta hipótese, o autor autoriza – ou não – a utilização de sua obra nas condições que considere adequadas. Não havendo tal autorização a utilização de sua obra resultará na prática de ato ilícito sujeito à reparação indenizatória – de natureza moral e patrimonial – , além das demais sanções inclusive penais, previstas em lei”.
Na segunda e terceira hipóteses mencionadas pelo ilustre autor, estaremos diante de situações nas quais o autor recebe a encomenda para a criação de uma obra musical para determinada peça publicitária, em relação de prestação de serviços, sem ou com vínculo empregatício. Vamos imaginar, inicialmente, a hipótese em que a agência ou produtora faça a encomenda a um compositor, para criação de uma obra musical especificamente para incluir em um determinado filme publicitário, propondo remuneração por essa criação.
Nesse caso, José Carlos Costa Netto opina, à vista da omissão da atual lei autoral no tocante à obra sob encomenda, que “na inexistência de contrato válido entre as partes de concessão (autorização ou licenciamento) ou cessão de direitos patrimoniais de autor, que o “exercício comum”de direitos de autor como restrição à exclusividade constitucional consagrada ao autor da obra somente poderá ser considerado na hipótese em que haja uma participação efetiva e relevante do comitente na execução da obra, interagindo diretamente em sua criação. Em caso contrário, o interesse econômico comum entre autor e comitente (ou encomendante) – ou mesmo a atuação deste apenas auxiliando, devendo atualizando, fiscalizando ou dirigindo na produção da obra – não poderá resultar em enfraquecimento da sólida tutela constitucional da exclusividade de direitos atribuída ao autor da obra intelectual”34.
Se é verdade, diante do que dispõe a lei, que o autor ou o intérprete são livres para contratar com a agência ou produtora determinada remuneração, não é menos verdade que tal contratação de natureza patrimonial não implica em cessão de direitos. Costa Netto insiste nesse ponto, destacando que “a utilização… da obra ou interpretação pelo comitente se limitará ao tempo e às condições autorizadas – prévia e expressamente por escrito – pelos respectivos titulares originários, que, assim não sofrem nenhuma restrição quanto à titularidade e quanto ao exercício dos seus direitos exclusivos consagrados constitucionalmente”. Mesmo no caso de autorização implícita do titular, esta só poderia ser entendida a “título temporário e limitada ao objetivo imediato da encomenda, no campo restrito das atividades diretas do comitente”, tudo conforme a regra já mencionada da restritividade das interpretações conferidas aos negócios jurídicos sobre direitos autorais.
Quanto à terceira hipótese considerada pelo ilustre jurista (“a criação ou interpretação de obras intelectuais, sob o regime de prestação de serviços com vínculo empregatício”, ele utiliza a analogia da relação do jornalista com a empresa jornalística (artigo 36 da Lei 9610/98)para concluir que “a simples subordinação hierárquica, o caráter de continuidade ou mesmo o recebimento de salário não interferem na criação intelectual e, por isso, não propiciam titularidade originária de direitos de autor ou conexos ao empregador”. Conclui asseverando, que, “salvo raras exceções”, “não há falar em atribuição de titularidade originária ou autoria – ou mesmo, coautoria – ao empregador, mas somente em direito de exploração econômica, que, nos casos de obras que puderem ser objeto de individualização no contexto da obra coletiva, deverá ser sempre limitada a determinado período e restrita ao objeto imediato próprio à natureza da atividade do empregador”35.
A Titularidade é do Criador
Frente ao que já se expôs até aqui, concluímos que a titularidade da obra musical inserida na peça publicitária será sempre do seu criador original, pessoa física.
Passemos a uma análise mais pormenorizada dessa titularidade.
Quanto à titularidade do direito moral, Carlos Alberto Bittar opina que “os elementos em questão não respondem à natureza especial dos direitos envolvidos, principalmente no que respeita aos direitos de autor e aos da personalidade. Envolvendo direitos ligados à própria índole humana – o direito moral de autor, relacionado com a criação da obra, e o direito à imagem, referente à própria expressão humana – não satisfazem os documentos às exigências necessárias, de cunho conceitual e legal (contratação expressa; requisitos de especificação de cada direito cedido; inacessibilidade dos direitos morais de autor; registros de contratos e outros). Assim, por exemplo, mesmo na cessão total de direitos, permanecem intactos os direitos morais que dizem respeito à preservação da paternidade e da integridade da obra”36.
A propósito, o artigo 27 da Lei 9610/98 estabelece que os direitos morais não podem ser alienados ou renunciados. Nesse compasso, mesmo que o autor, por hipótese, deseje promover a transferência ou cessão de seus direitos morais – como por exemplo atribuindo a autoria a outrem – , estará impedido de fazê-lo, por determinação legal.
No que tange à titularidade patrimonial, a solução deve estar negociada no contrato de trabalho ou de serviço. E tal contrato deve atentar para o disposto no artigo 4º.e inciso VI do artigo 49 da Lei 9610/98, quanto à interpretação restritiva dos termos a serem celebrados. Ademais, consoante as regras do artigo 50 do mesmo diploma, tal documento deverá ter forma escrita, presume-se onerosa, e nele deverão constar como elementos essenciais o objeto e as condições de exercício do direito quanto a lugar, preço e tempo. Quanto a este último, é importante que seja determinado no contrato o período de tempo pelo qual a campanha será veiculada. Nesse sentido, já se decidiu que “a dúvida quanto aos limites da cessão de direitos autorais milita sempre em favor do autor, cedente, e não em favor do cessionário, por força do art. 49, inciso VI, da Lei n.º 9.610 de 1998”.
Não raro nos defrontamos com situações nas quais se pretende tirar do autor o direito a direitos patrimoniais e mesmo morais, baseado em supostos contratos ou acordos verbais. No âmbito das produtoras de áudio e das agências de publicidade, qualquer limitação a tais direitos deve ser expressa num documento objetivo e inequívoco, tratando de tal objeto, observados os dispositivos legais acima apontados. Se tal documento não existir, não haverá nenhuma possibilidade de se requisitar eventual parceria na autoria da obra, ou pleitear acordos ou percentuais financeiros. O autor é o titular inconteste do direito moral do autor, e, caso não exista documento idôneo e específico tratando de eventual divisão dos direitos patrimoniais, será também o titular integral de tais frutos. Se um dos sócios da produtora, por exemplo, for o criador exclusivo das obras musicais utilizadas em peças publicitárias, será o único titular dos direitos morais, e eventual divisão dos direitos patrimoniais somente poderá ser aceita caso seja celebrado qualquer modalidade de acordo entre os demais sócios (“licenciamento, cessão, concessão, ou por outros meios admitidos em direito”, segundo o artigo 50).
A produtora, no entanto, torna-se detentora dos direitos conexos relativos à obra, como esclarece Paulo Gomes de Oliveira Filho, no sentido de que “no campo publicitário, na produção de “jingles”, trilhas musicais dos comerciais e outros materiais de propaganda, é inegável que a titularidade originária dos direitos conexos aos de autor relativa à produção fonográfica seja atribuída à produtora fonográfica, uma vez que sua participação determina o direcionamento artístico e musical em todos os detalhes necessários à materialização da gravação, contribuindo, de forma criativa, para o resultado final da fixação da obra musical publicitária. Ressalta ainda que “isso não quer dizer, em absoluto, que não sejam protegidas as participações individuais dos artistas (cantores, locutores, intérpretes e executantes), arranjadores, maestros e outros profissionais que contribuem para a produção musical publicitária final”37.
Ainda assim, em perfeita consonância com o que expusemos até aqui, o mesmo autor considera que “derivada ou originária, a titularidade dos direitos conexos aos de autor sobre a produção fonográfica, notadamente na publicidade, da produtora fonográfica não implica em subtrair de terceiros titulares de direitos autorais e conexos que participam da obra final musical publicitária, impede que a cessão desses direitos seja definitiva, mesmo porque não havendo a possibilidade de cessão e transferência definitiva dos direitos autorais e dos conexos dos profissionais envolvidos (na forma estabelecida pela Lei 6.533), a produtora não poderá ceder definitivamente os direitos conexos sobre a obra fonográfica, já que não é ela titular exclusiva desses direitos.Para cada utilização, na forma pactuada, a produtora deverá efetuar o pagamento dos direitos autorais e conexos dos terceiros”.
Há ainda um outro ponto que merece registro. Não é incomum nos depararmos com confusão que se faz entre os jingles e trilhas criados para peças publicitárias de um lado, e eventuais obras criadas por encomenda para uma novela ou abertura de programa de TV de outro. No caso destes, estamos nos referindo à execução pública, através de cadastro de fonogramas, que, nos termos do inciso X do artigo 10 da Lei autoral, correspondem a “toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual”.
Cada fonograma cadastrado no sistema do Ecad (escritório central de arrecadação e distribuição) gera o chamado ISRC ( International Standard Recording Code, ou “código de gravação padrão internacional”), que serve para identificar a fixação de uma obra musical. A execução pública de um fonograma (rádios, bares, shows, etc.) é identificada através do ISRC. Nele estão registrados os nomes dos autores, intérpretes, editores, produtores fonográficos, músicos executantes, cujos dados permitirão que cada um dos titulares de direitos sejam devidamente remunerados. E isso porque quando uma obra musical é executada em rádio, TVs, meios digitais ou em shows e concertos, e se não estiver em domínio público, gerará proveito econômico ao seu autor, decorrente dos direitos de execução pública, previstos no artigo 99 da Lei 9610.
Ocorre que as obras musicais utilizadas em peças publicitárias, sejam elas originárias (como os jingles) ou não, também são executadas em rádio e TV e nos meios digitais, mas não geram direitos de execução pública aos seus criadores..
Essa é a regra vigente no sistema brasileiro de gestão coletiva de direitos autorais, em modelo que prevalece na quase totalidade dos países, com raríssimas exceções, como na Argentina e Alemanha. Nesses países, são fixadas “tarifas mínimas para o uso de obras musicais em atos de natureza publicitária”, conforme disciplinado pela Sadaic (Sociedade Argentina de Autores e Compositores de Música). Nesses casos, as obras musicais incluídas em peças publicitárias geram dividendos financeiros através do pagamento de uma taxa separada, à parte do regime geral de arrecadação e distribuição pelas sociedades de gestão coletiva.
É importante a compreensão sobre a diferença entre o regime de execução pública de um lado, e de outro lado as relações contratuais, de natureza privada, que tratam da inclusão das obras musicais em peças publicitárias. Nesse caso, não há ISRC, nem há registro dos fonogramas.
São duas modalidades absolutamente diferentes. No entanto, há quem ainda confunda tais conceitos. Dou aqui um exemplo. Imaginemos que um autor de obras musicais, sócio de uma produtora de áudio, seja o criador exclusivo de todos os jingles e trilhas produzidos por tal empresa. Imaginemos que tal autor também crie temas de programas e novelas de TV, e que decida celebrar um instrumento de cessão com sua empresa, exclusivamente com relação a tais obras. Nesse caso, todas as obras gerarão fonogramas, que terão os respectivos ISRCs, a partir dos quais deverá ocorrer o recolhimento dos direitos pagos pela TV ao Ecad, com respectiva distribuição, através de uma das associações integrantes do sistema de gestão coletiva. Imagine, por fim, que os sócios desse criador na referida empresa tentem utilizar esse instrumento de cessão, advogando que o mesmo deveria ser estendido também a todas as obras publicitárias criadas por ele. Tal pretensão, certamente, não poderá encontrar êxito, sendo que, para refutar tal tentativa, bastaria a invocação do sempre lembrado artigo 4º. da lei 9610/98, quanto à natureza restritiva da interpretação de negócios relativos a direitos autorais, bem como dos artigos 49 e 50 do mesmo diploma, conforme já exposto.
Conclusões
A obra musical incluída em peça publicitária é considerada obra sob encomenda.
A lei autoral brasileira não permite que uma pessoa jurídica seja considerada autora de qualquer tipo de obra. No entanto, é possível – e esta é uma prática recorrente no mercado publicitário – que uma empresa, como uma agência de publicidade ou produtora, contrate um autor (pessoa física) para criar uma obra musical, nos termos de determinados critérios e diretrizes impostos pelo comitente (empresa) ao comissário (autor).
A peça publicitária envolve uma multiplicidade de criações artísticas independentes, cada qual com seu criador, que deverá ter sua proteção autoral respectiva.
Os direitos dos criadores deverá ser preservado em cada utilização, a teor do disposto no artigo 4º. da Lei 9610/98.
São duas as modalidades de utilizações de obras musicas nas peças publicitárias : a) a encomenda para a criação original de um jingle ou trilha; b) a reutilização de fonogramas preexistentes, ou regravação de obras musicais preexistentes. No primeiro caso, existe a necessidade de celebração de instrumento, sob a forma de “cessão, concessão ou por outros meios admitidos em direito” (artigo 49 da Lei 9610/98).
No caso da reutilização de fonogramas, será necessária a autorização do titular do direito conexo referente ao fonograma (produtor fonográfico), bem como da editora (com relação ao direito de autor). No caso da regravação de obras musicais preexistentes, sem reutilização de fonogramas, será necessária tão somente a autorização da editora.
A relação do titular originário de direito de autor e conexos (comissário) com as empresas comitentes (que fazem a encomenda da obra) pode ser da seguinte forma : a) De forma desvinculada, sem participação do titular na elaboração da obra, quandoeste, mediante certas condições de utilização da obra e remuneração, autoriza a utilização da mesma sem cessão ou transferência de direito; b) Mediante o regime de prestação de serviços, sem vínculo empregatício, quando o usuário encomenda e remunera o autor para criação de uma obra que será utilizada por aquele ; e c) Mediante o regime de prestação de serviços com vínculo empregatício, quando o usuário contrata empregado para as funções de criação ou interpretação de obra .
A titularidade da obra musical inserida na peça publicitária será sempre do seu criador original, pessoa física.
Referências
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Notas
- AGNELLI. Jarbas. Época a semana Full HD. Disponível em: <<https://youtu.be/f_QqXHSJoWI>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- PERFECT10GIRL7. Skank – Rider – Vamos Fugir. Disponível em: <<https://youtu.be/_yFSVaBgChs>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- ROSSET. Moises Escorsi. Eduardo e Monica – Vivo. Disponível em: <<https://youtu.be/TYy6-zUwrIY>>. Acesso em 23.03.2021. ↩︎
- VIEIRA. Robson. Cazuza – Exagerado – Homenagem da vivo o dia dos namorados. Disponível em << https://youtu.be/JDM3CrX0bjo>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 1ª Ed. São Paulo: Forense, 1980, p. 70. ↩︎
- ABRÃO, Eliane. Comentários à lei de direitos autorais e conexos, 1ª Edição, São Paulo: Lumen Júris, 2017, p. 45. ↩︎
- COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no Brasil, 3ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2019, p. 120/121. ↩︎
- BENNETT, Roy. Uma breve história da música, 1ª Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.p. 12. ↩︎
- MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor : repersonalizando o direito autoral”, 1ª. edição, Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2008, p.9) ↩︎
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor na obra publicitária, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 73 ↩︎
- BITTAR, Carlos Alberto. O direito de autor nos meios modernos de comunicação, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 38. ↩︎
- CHAVES, Antonio. Cinema, TV. Publicidade cinematográfica, 1ª Edição, São Paulo: Edição Universitária de Direito, 1987.p. 236. ↩︎
- MARCONDES, Pyr. Uma história da propaganda brasileira, 1ª Edição, Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 243. ↩︎
- PONTOKOM. Bosco. Quero ver você – Banco Nacional. Disponível em: <<https://youtu.be/fFkVVB4sxRc>>. Acesso em 23.03.2021. ↩︎
- MENDONÇA. Gustavo. Jingle da Varig. Disponível em: <<https://youtu.be/G1VT3B7LW7U>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor na obra publicitária, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 107. ↩︎
- FCTIAGOIORC. Renner – Outono / Inverno 2010 – Com Blame. Disponível em:<<https://youtu.be/-CUbRq1Cdew>>. Acesso em 23.03.2021. ↩︎
- MASALOMASS. What a wonderful world (version coca cola). Disponível em: <<https://youtu.be/MI5XzH-7K0I>>. Acesso disponível em 23.03.2021. ↩︎
- MARQUES. Paula. Faber Castell – Aquarela (1983) “Versão Original”. Disponível em: << https://youtu.be/mlzJd0xKubA>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- BRANDÃO. Thales. São tantas emoções: Nestlé 90 anos. Disponível em: <<https://youtu.be/V5u7W_aSYRM>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- GLASSWORKSVFX. Pepsi Commercial HD – We Will Rock You (Feat. Britney Spears, Beyonce, Pink e Enrique Iglesias. Disponível em: <<https://youtu.be/W7jkygJ_QNo>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- BOYD. Paul. Jaguar Sting 60 tv. Disponível em:<< https://youtu.be/UqItWzmnrD4>>. Acesso em 23.03.2021. ↩︎
- ANITTA. Deixa ele sofrer (Official Music Video). Disponível em: <<https://youtu.be/geFj_kMvasQ>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- WBRASILONLINE. Rider – Descobridor dos sete mares. Disponível em: <<https://youtu.be/MgRS6jjSh1M>>. Acesso em 23.03.2021. ↩︎
- MARTINS. Samuel. Comercial propaganda Rider como uma onda no mar Tim Maia 1993. Disponível em: << https://youtu.be/l7cEhJirT6I>>. Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- SCALLA. Luana. O ritmo da w/Brasil nas campanhas “hits” da Rider. Disponível em: << https://adnews.com.br/o-ritmo-da-w-brasil-nas-campanhas-hits-da-rider/>> Acesso em 23.03.2021 ↩︎
- HAMMES,Bruno Jorge, 2002, O Direito de Propriedade intelectual conforme lei 9610 de 19.2.1998”, Editora Unisinos, 3a. Edição, 2002, p.54. ↩︎
- CABRAL, Plínio. A nova lei de direitos autorais: comentários. 4.ª ed. São Paulo: Harbra, 2003., p. 36 ↩︎
- ob. cit., página 15. ↩︎
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor na obra publicitária, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981., p. 191). ↩︎
- ob. cit., página 187 ↩︎
- Contratos em matéria de direito autoral e obra publicitária”, texto de conferência proferida em 12.10.1996, no “Seminário Nacional da OMPI sobre propriedade intelectual para magistrados e membros do Ministério Público”, em São Paulo, página 4, apud José Carlos Costa Netto, obra citada, p. 182 ↩︎
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor na obra publicitária, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 109. ↩︎
- ob. cit., página 186. ↩︎
- ob. cit., paginas 190/191 ↩︎
- BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor na obra publicitária, 1ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.p. 142. ↩︎
- GOMES DE OLIVEIRA, Paulo. Os direitos fonográficos ou fonogramas publicitários, Paulo, Disponível em <<http://paulogomesadv.com.br/os-direitos-fonograficos-ou-fonogramas-publicitarios/>> Acesso em 25 de fevereiro de 2021. ↩︎